enquanto as mulheres tiverem “as suas limitações” este dia faz sentido *

A última vez que trabalhei por conta de outrém foi o ano passado. Durante o processo de recrutamento disse sempre que tinha
disponibilidade total e vontade de me dedicar de corpo e alma à carreira profissional. E tinha mesmo. Principalmente porque sou apaixonada pelos vinhos. 
Fui seleccionada.

No dia em que ia para o Porto em formação o G. adivinhou e ficou cheio de febre. Chorei o caminho todo e só fui porque o D. me obrigou. Os dias foram maravilhosos. Vinho verde às dez da manhã na varanda senhorial sobre as vinhas. O cheiro da fermentação. As provas com vista para o Douro. O infinito da uva.  Mas à noite, sempre que parava, só pensava em cada segundo da vida do filho que eu estava a perder. Saudades que magoavam o coração. E chorava até demanhã. Comecei a trabalhar e, de facto, era-me exijida dedicação total. Saía de casa antes das sete e chegava depois das oito da noite. Adorava o que fazia (trabalhar com homens, vender vinho, almoçaradas de três horas e bebedeira a partir do meio dia!) mas o coração foi ficando cada dia mais pequenino. Tinha saudades de viver o meu filho. Para que tudo estivesse no sitio tinha que ter uma empregada e o que ganhava não pagava tudo.

Muito menos a dor que se instalou no meu peito.Quando confrontei os meus superiores com a questão do horário ouvi: Arranje uma ama., Você deve ser comunista! e Uma mulher tem que se restringir às sua limitações. Esta última empurrou-me a mão, escrevi a carta de demissão e vim-me embora.

Depois desta experiência concluí que o meu trabalho tinha que estar adaptado à existência do meu filho e não o contrário. Por muito que a procura fosse mais longa e a carreira menos prestigiante.

Hoje fui a uma entrevista para uma entidade bancária. Prometi a mim mesma que não ia enganar-me a mim nem ao patrão e vivi um momento surreal.

– Está motivada para abraçar uma carreira comercial, com dedicação total?
– Não… Tenho um filho e alguém o tem que ir buscar as 18h30.
– Hummmm… Acabou o curso bastante tarde?
– Ainda nem acabei.
– E foi para Economia porque queria seguir uma carreira na àrea bancária?
– Não. Queria ser jornalista.
– Ok… E quais são os seus objectivos?
– Educar o meu filho.

(…)
Se calhar não vale a pena vir aos psicotécnicos…
Acompanhou-me até ao elevador, abraçou-me e deu-me dois beijos.
Ou pensou que eu estava maluca, ou ficou comovida por alguém ainda falar a verdade… e nada mais do que a verdade.

* enquanto morrerem melhores em constantes episódios de violência, enquanto por esse mundo existirem mulheres exploradas, violadas, usadas, violentadas. enquanto existirem diferenças nos direitos entre homens e mulheres, este dia faz sentido. e se um dia, num mundo ideal, não existirem razões, existirão as memórias da luta. 

8 comentários em “enquanto as mulheres tiverem “as suas limitações” este dia faz sentido *”

  1. Aproveito para acrescentar que, de acordo com as teorias da "Princesa", as outras, aquelas que não opção senão trabalhar são menos mães que as que têm a felicidade de poder escolher. Sim… de facto… não há pachorra para baboseiras!!

  2. Não querendo tomar as dores da Catarina (ela não precisa que a defendam), digo que já perdi/ganhei imenso por ter tomado opções semelhantes.
    Perdi dinheiro, valores mais altos, e tive de me contentar por tarefas mais mal pagas. Ganhei o que ganhei estando com elas (as minhas filhas) todos os dias.
    Foi uma escolha que pude fazer, com consequências ao nível do "estilo de vida": fora com a TV por cabo, fora com a net em casa. fora com coisas que eu gosto, mas foi uma opção.
    Com cedências.

    (desculpe, Catarina, se o meu comentário é difícil de perceber. mas ainda hoje ouvi "ah, estás com as miúdas todos os dias ao fim do dia, etc, porque podes!". Sim, posso. e tive de manobrar e ceder muito para poder "poder")

    muito bom post 🙂

  3. Mikasha agradeço que me tome as dores. Eu já perdi dinheiro por valores mais altos e acredito que essa luta faz sentido. trabaho e muito. Mas alguém que trabalhe 20 horas é menos mãe???? Falamos de condições laborais e não de opções pessoais.

    Falar da minha experiência como mãe não é dizer que as outras realidades são más.

  4. Certo… certo… baboseira é também achar que fazer umas coisas, umas coisinhas aqui e ali, é trabalhar.
    Mas o que acho absolutamente fascinante é que analisada a "façanha" que descreve no post percebe-se que fez perder tempo às pessoas que a contrataram, fez perder tempo à pessoa que a entrevistou, tempo esse que podia ser ocupado por essas pessoas a acompanhar o crescimento dos filhos, porque sim… não é a unica pessoa do mundo a ser mãe e a querer estár em permanencia junto dos seus filhos. Sem contar com o facto de ter feito com que outras pessoas mais merecedoras, desempregadas e a precisar de trabalho tivessem perdido a oportunidade e a possibilidade de ser selecionadas ou sequer a ir à entrevista de emprego, que foi dada a alguem que pode e opta por ficar em casa a fazer uns biscates. É falta de seriedade, é desonesto, é falta de educação.

  5. Xana, desculpe, mas falta de educação é chamar biscate ao trabalho que se faz em casa (e não falo de tarefas domésticas!).
    Estive dois anos em casa, desempregada. Concorri a muitas ofertas, de algumas não tive resposta – quem perdeu tempo fui eu – de outras obtive respostas simpáticas.
    Tive uma oferta excelente: implicava trabalhar fora de casa (coisa pela qual qualquer pessoa anseia ao fim de um ano confinada a 4 paredes, gerindo o ordenado do marido como pode e consegue), sair Às seis da manhã, chegar às oito.
    Tenho dois filhos pequenos, a mais pequena (na altura) comigo.
    No final, o saldo financeiro seria positivo: o que ia ganhar dava para pagar o infantário onde teria de pôr a mais nova, dava para pagar os transportes, dava para tudo.
    Mas eu teria de sair às seis, chegar às oito. Como – deus sabe como lhes deve custar – muitos pais e mães fazem.

    Optei pelos "biscates": fiz traduções em casa, transcrições, formatação de documentos, enquanto criei – durante esses dois anos – a mais nova.
    Foi uma opção, minha, não um modelo a seguir.

    Durante dois anos trabalhei cinco horas por dia nesses biscates, acompanhei o crescimento da minha filha, fui buscar o mais velho À escola, tratei da casa, passei a ferro, fiz jantar e marmita para o marido, colaborei em projetos (biscates sem retorno financeiro).

    Nunca desvalorizei o trabalho e o esforço de quem tomou opções diferentes das minhas.
    Não gosto, por isso, que chamem "biscates" àquilo que tanto trabalho e esforço me deu durante esses dois anos.

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