braço cheio de marcas

Começou assim: um braço cheio de marcas

Eu era uma miúda e admirava-o profundamente. Namorávamos há algum tempo e fomos passear ao Porto. Lembro-me da bolsinha que levava com dinheiro. Mas, naquela altura, não me lembrava que tinha o nome do meu namorado anterior escrito na camurça. Ele viu e chateou-se. Uma cena que, num primeiro instante, achei que era querido gostar assim tanto de mim ao ponto de ter ciúmes de um namorico tão antigo. Mas a zanga foi demasiado intensa e comecei a chorar. Nesse momento ele agarrou-me por um braço. Com muita força. Eu assustei-me e parei de chorar. Horas depois, na casa de banho de um café, percebi que tinha o braço cheio de marcas. Fiquei a olhar muito tempo. Uma sensação muito estranha. Como se o olhar estivesse fascinado e o pensamento parado.

A partir desse dia todas as cenas de ciúmes dava origem a um episódio violento. Sempre silencioso. Um braço apertado, um murro na perna. Depois existiam sempre as mais bonitas declarações do mundo. Eu desculpava sempre.

Neste momento é importante explicar que nunca apanhei uma palmada sequer dos meus pais. Nunca sofri nem assisti a qualquer tipo de violência. Dizem que as vítimas de violência só ficam porque querem. O tal ditado que à primeira todos caem mas à segunda só cai quem quer.

Digo-vos que uma vítima de violência não tem os instrumentos para perceber o que está a acontecer. Precisa de ajuda.

A minha avó foi a primeira a dizer que não gostava do rapaz. Partilho pela beleza da sua observação. Perante duas toalhas o rapaz tinha-me dado a mais pequena. A minha avó explicou-me que no amor oferecemos sempre o melhor.

Antes da minha viagem de finalistas, depois de mais uma cena de ciúmes, fiquei com uma perna marcada. Os meus amigos repararam porque nem sempre me lembrei de esconder. E avisaram.

Fiquei muitas vezes na rua quando ia ter a casa dele. Tive medo, vivi em tensão. Também tive momentos muito bons que eu acreditava que fossem suficientes para compensar tudo o resto. Mas depois veio aquilo.

Talvez o cérebro já estivesse alerta. Talvez eu já estivesse demasiado cansada. Talvez aquele último – que seria último – tenho sido de uma gravidade que todos os sinais de alertas acordaram daquela dormência.

Essa última vez, nessa cena demasiado violenta, nessa carga de porrada que o tempo tratou de tornar uma memória enevoada, não foi possível esconder. A minha mãe viu, o meu pai percebeu. Implorei que não fizessem nada. Assumi-me como culpada. Pedi que me deixasse fechar aqurla história.

Com a vida percebo que não era culpada. Que não tinha provocado aquela cenas de ciúmes. Nem sequer tinha uma parte de responsabilidade por não ter abandonado mais cedo. Tornei-me intransigente e atenta.

 

A violência nos namoros adolescentes é o primeiro alerta. É vista como normal e justificável. Pode começar por um braço cheio de marcas. Não é! Violência nunca é amor.

 

Hoje é dia da mulher. Assinalo-o com a minha história, sem metáforas, nem floreados.

Se és vítima de violência pede ajuda. Não estás sozinha, não és a única, não és culpada, não permitiste.

 

Escolhi uma foto bonita do Pau Storch porque todas somos princesas. Independentemente de já nos termos sentido um lixo.

12 comentários em “Começou assim: um braço cheio de marcas”

  1. Fiquei com o coração apertado… O mal é que se uma pessoa vai à primeira (ou segunda), mesmo que para si própria seja inaceitável e feche o capítulo, parece que aos olhos dos outros não é nada, “foram só uns gritos a meio da noite” “foi só uma palmada uma vez”. Parece que se reagimos, parece que se não levamos uma carga de porrada não temos justificação para voltar as costas ao “pai dos nossos filhos”.

  2. Parabéns pela coragem e obrigada pela partilha. Impressionante quantas de nós já vivemos histórias violentas e é extremamente importante começar a demonstrar que este problema é realmente transversal.

  3. Patrícia Lokal Organizer

    Nunca é fácil, mais ainda, admitir que viveu tal experiência, é para poucos! Te acompanho a pouco tempo, mas seus textos são inspiradores, demasiados verdadeiros e sempre oportunos! És brilhante!

  4. Que coragem e que exemplo maravilhoso que poderá ser para outras mulheres poderem acordar dessa dormência que refere a tempo de não ser tarde de mais!!! Um dia feliz!

  5. Isabel Pinto Basto

    Olá Catarina,
    É muito bonita e mais ainda quando resolve partilhar uma história dura da sua vida para que outras mulheres se encoragem a falar e denunciar os que as fazem sofrer.
    Sou particularmente sensível a isto, não por que tenha sido vítima, mas por que acho que somos uma sociedade profundamente machista e, mais uma vez, cabe-nos a nós educar filhos e filhas para este flagelo ancestral, mudo e que não pode continuar.
    Obrihgada e bem haja.
    isabel

  6. É efémera fragrância
    o perfume da mulher encantadora.
    Se bonita, salivada
    Se feia, desprezada
    Se calada, aceitada
    Se replica, saco de pancada.

    Toda a mulher é amada. Mas se quiser ser sempre muito feliz toda a sua vida, nunca esteja doente nem deixe que lhe doa a cabeça.
    Porque senão o beijo do deitar é a agressão do acordar.

  7. Que força, obrigado pela partilha.
    Eu nunca fui agredida fisicamente mas à oito anos que sou perseguida pela mesma pessoa e a polícia não faz nada porque essa pessoa não me tocou.
    Eu comecei a namorar com o rapaz tinha 13 anos e namorámos até aos 20, altura pela qual me traiu com outra rapariga. Na altura comecei a receber mensagens de ameaça para o deixar, fui seguida e até usaram a desculpa de uma vez ser assaltada para eu passar a ter cuidado com quem andava. Fiz queixa na policia (o meu ex pensa que a retirei para ver se o apanho) mas até agora não há provas suficientes por ser sempre feito de um computador de uma biblioteca publica e de contas e numeros de telefone sem nome. Eu mudei de pais, ele continua a seguir-me. Diz que um dia espera que a filha dele tenha a mesma historia de amor que nós tivemos. Eu espero que não. Nunca me tocou com um dedo mas a violência psicologica tem acabado comigo. Já não sou a mulher lutadora e sonhadora que era… Tenho uma nuvem preta sempre a seguir-me….
    a minha pergunta é: como viste o sol de novo?

  8. Não um conselho, e porque tive exemplos na minha família, mas uma lembrança apenas para todas as mulheres vítimas de violência doméstica.
    Nunca aceitem os conselhos de quem diz que ele vai mudar, porque nunca, mas mesmo nunca na vida um homem muda.
    Envelhece apenas.
    E os instintos ou o carácter de antes, aumentam exponencialmente na proporção que a idade avança.

  9. Dei hoje, 25 de Julho de 2019, com o seu testemunho. É, de facto, necessária uma boa dose de coragem para superar o silêncio que ainda hoje envolve situações desta natureza. Nasci e vivi num país profundamente misógino. Jamais fui vítima deste tipo de violência, mas a ela assisti infligida a mulheres que me eram e são próximas. Num dos casos, a violência prolongou-se por cerca de 23 anos. Também neste caso, quando pela primeira vez a pessoa em causa quis sair de casa ouviu: “O teu lugar é ao pé do teu marido. Não te esqueças que tens uma filha!” A naturalidade com que a violência é olhada, tolerada, mesmo justificada é mais uma violência! Face à violência, quebrar o silêncio, superar os tabus, erguer a voz é, muitas vezes, o primeiro passo na via da libertação.

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