a minha adolescência fez-se de cartas

A minha adolescência não se fez de SMS ou WhatsApp, a minha adolescência fez-se de cartas.

Penso muitas vezes – e verbalizo, a bem de uma relação honesta com o meu “filho grande” – que agradeço não ter sido adolescente com telemóvel, chats, conversas permanentes e possibilidade de resposta imediata. A minha ansiedade dos 14 anos não teria aguentado.

A minha adolescência fez-se de cartas e da expectativa – coração aos pulos, quase na boca, e tonturas – quando rodava a pequena chave da caixa do correio. Consigo lembrar-me do dia em que recebi uma chave do correio. Consigo lembrar-me do som metálico da porta a baixar. Consigo lembrar-me da luz que atravessava as portas vidradas do prédio da Rua das Flores e iluminava espaço mínimo para o qual eu olhava como se fosse uma mina de ouro.

A minha adolescência fez-se das cartas que recebia e daquelas que enviava, numa cadência de duas cartas por semana porque, com selos normais, lambidos com cuspo, de Almada a Portalegre eram apenas dois dias.

Eu sabia, tinha a certeza absoluta que, no momento em que largava o envelope cheio, às vezes com mais de 10 folhas A4, que guardava todos as minhas confidências – e toda a gente sabe que confidências de adolescente valem fortunas – elas chegariam ao seu destino.

Nos envelopes seguiam folhas manuscritas, fotografias e outros bocadinhos de mim. No Natal enviava postais. Às vezes os meus avós mandavam-me dinheiro no aniversário. E nunca, mesmo nunca, uma carta ficou perdida. Eu tinha essa certeza quando largava o envelope no grande marco dos correios, vermelho e com pose de fortaleza.

Há dois anos (coincidiu com a privatização dos CTT), em diferentes momentos, três cartas e duas encomendas que enviei ficaram perdidas. Numa dessas ocasiões, uma carta importante, fui salva pelo centro de distribuição do meu código postal, que deu volta a tudo e a encontrou. Mas, depois disso, passei a ter medo quando largo um pedaço da minha vida num marco dos correios. Tenho medo que aquela parte de mim fique perdida.

Ontem escrevi uma carta de amor ao meu marido, sem envelope azul ou verde. Quero acreditar apenas que chega ao destino. Porque um país, assim como um casamento, também se percebe na forma como os seus correios funcionam, é tudo uma questão de confiança.

 

Crónica Dinheiro Vivo

 

foto: Vitorino Coragem para a Nheko

3 comentários em “a minha adolescência fez-se de cartas”

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  2. Vânia Ferreira

    Que ideia original.. Gostei tanto… Arrisco me a dizer que vou fazer o mesmo neste Natal.. Enviar uma carta ao meu marido para ver a cara de surpresa dele quando a receber.. Obrigado pelos teus textos inspiradores…

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